É tocante e profundamente impressionante este poema, pela triste realidade que expõe.
Mas quando isto nos toca mais de perto, sofremos profundamente e sentimo-nos impotentes perante estas realidades.
Saibamos pois olhar mais profundamente, nós que tivemos a graça de ver e poder caminhar, escolhendo o caminho.
"(Poema lírico que obteve "Menção Honrosa" nos Jogos Florais do Atneu Comercial do Funchal, em 1946).
Para ti, Filha querida,
Uma história vou contar:
Era uma vez um mendigo,
Ficou cego de chorar...
Nunca passes distraída
Quando ele por ti passar.
Nunca passes distraída...
Nunca passes indif'rente...
Quando vires um ceguinho
Esse farrapo de gente.
Não tem olhos para a Vida,
Ficou cego a mendigar...
Folha morta, já caída,
vai na água para o mar.
Mar de sal amarga a fel,
Mar da vida onde flutua
Seu corpo, frágil batel,
Naufragando pela rua.
Vai batendo em cada porta
Onde a ventura morou:
-Portas do Bem já sem números,
Porque a chuva os apagou!
Bate-lhe o vento na cara,
Vento forte da desgraça...
Mas o cego nunca pára,
Espera ainda uma graça...
Lá vai seguindo na estrada,
Cheio de fome, a tremer...
E bate em nova morada,
-"Vá com Deus, não pode ser..."
Vai batendo em cada porta,
Onde, outrora, já passou:
- A Palavra que conforta,
Também essa se calou!
A tropeçar nos caminhos,
Fronte de cera, curvada...
Vai escondendo a tristeza
Da sua mágoa calada.
Olhos fundos, sem ter Luz...
Olhos fundos, como poços...
Quase pergunta a Jesus:
- Que castigos são os Vossos?!
Mas crendo na Caridade,
A própria treva o conduz:
Talvez encontre a bondade...
Talvez possa ver a Luz...
E tendo as asas quebradas
Canta como um passarinho...
Perdido pelas estradas,
Sem poder voltar ao ninho!
E sabe que todo o Homem
Tem uma Estrela no Céu...
A sua, não pode vê-la,
decerto Deus não lha deu!
Já é noite, sobe a Lua...
Destino - como és cruel!...
Saco às costas, pela rua,
Vai vazio o seu farnel.
Olhos fundos, não têm sol...
Vai devagar, não tem pressa...
Pois não vê nascer o dia,
Nem quando a noite começa.
A tactear pela estrada
sente o aroma duma flor...
Que lhe cai dentro da mão,
A perfumá-la de amor.
Vê a criança inocente,
- que bondoso coração! -
como leva docemente
O ceguinho pela mão.
Vem do Céu, vem de Jesus,
O seu amor sem esp'rança...
Pobre cego que ama a Luz,
A luz que jamais alcança!"
Rogério Oscar Correia
(Trevo do Vale)
Funchal, 17.11.1945